Esta era a entrevista, que não desejava fazer, mas à qual não pude fugir. É a despedida de um Grande Senhor, do andebol do Boavista. Será surpresa para muitos, mas de certeza... um lamento para todos.
Na sua despedida, vamos viajar pela vida de um Grande Formador, Vitor Nascimento.
Para ter uma base de conversa, deixe-me colocar uma pergunta que será o fulcro de toda a questão. Confirma que já decidiu, sair do Boavista?
Sim, a minha saída é uma certeza.
Lamento muito, ouvir essa resposta, mas tendo que a aceitar, permite-me que façamos uma viagem pela sua vida?
Esteja à vontade, responderei a todas as questões que me colocar.
Vamos então iniciar essa “ viagem”.
Vítor Lage Nascimento, nos seus plenos 45 anos, dedicou os últimos 29 anos da sua vida ao Andebol. Nas últimas duas décadas foi a “cara” da formação do Boavista Futebol Clube e hoje despede-se destes palcos.
Antes de se despedir, Vítor Nascimento aceitou presentear-nos com um a entrevista sobre a génese desta paixão e sobre todo o seu percurso como treinador e atleta
“Sou um treinador de formação por convicção, por acreditar que a formação deve ter os melhores treinadores e que a formação é o suporte de toda a humanidade…”
É assim que se vê e assim se despede da sua grande paixão, o Andebol.
“O Vítor dedicou os últimos 18 anos da sua carreira de treinador à formação do Boavista, mas o seu percurso no andebol começou um pouco antes, ainda como atleta, em dois clubes com muita história no Andebol, o CDUP e o Estrela e Vigorosa Sport. Como vê este seu percurso de atleta?
O Meu percurso como atleta começou um pouco tarde, já aos 16 anos e de uma forma engraçada…
Eu, como quase todos os miúdos gostava de jogar futebol e achava que iria ser um “Fernando Gomes”, craque na época, como tal, um dia fui ao campo da Constituição prestar provas. Acompanhar-me-ia um amigo de infância Paulo Pinhal (Atleta Internacional de Andebol), na altura jogador no CDUP, que constantemente me convidava para ir experimentar o Andebol, mas eu nunca acedi ao seu pedido.
Desta maneira o Futebol abriu-me as portas do Andebol, pois o não, que ouvi para a bola no pé, fez com que eu decidisse finalmente aceitar o repto do Paulo Pinhal e lá fui eu, experimentar e adorar o ANDEBOL desde aí até agora sempre com a bola agarrada na mão.
O meu percurso como jogador, foi sempre mediano, feito de muita dedicação e esforço, pois não é fácil começar com 16 anos e entrar logo numa equipa de juniores que ombreava na altura com FC Porto, Salgueiros, FC Gaia, S. Mamede, etc…
Então ciente das minhas limitações vi-me na obrigação de trabalhar mais do que o triplo dos outros, muitas das vezes sozinho, com as balizas inclinadas, barreiras de atletismo, bancos ao alto, tudo isto para poder apanhar mais rápido todo o andamento dos outros meus amigos.
O meu primeiro ano foi muito difícil como atleta, penso que terei jogado no total cerca de 20minutos e no “Xira Cup”, fora isso, apoiava os colegas e ajudava o treinador Fernando Feijó.
Como o trabalho no desporto dá sempre fruto, no ano seguinte, já conseguia jogar com regularidade nos juniores e muitas das vezes era chamado aos seniores.
Naturalmente, tenho consciência que era um jogador limitado, mas muito, muito esforçado…
E assim me mantive durante muitos anos pelo CDUP, com a saída por uma época no Académico, voltando ao CDUP e acabando a carreira no Vigorosa, para onde foi quase toda a equipa do CDUP, quando estes extinguiram a modalidade no Clube.
No Vigorosa estive 2 épocas, terminando aí a carreira, muito cedo, para me dedicar por completo à carreira de treinador.
No CDUP jogou 15 anos. É uma carreira. Sei que este clube tem um peso significante na sua vida. O que representou para si o CDUP nesta época (86-96)?
O CDUP mais do que um Clube já por si especial é a minha Família, foi aí que me acolheram como filho, foi aí que me orientaram, educaram e criaram tudo aquilo que sou no desporto e na vida.
Recordo-me que morava próximo do Palácio de Cristal e íamos a pé em grupo, encontrando outros amigos pelo caminho e depois de atravessar todos os descampados, lá chegávamos com a equipa completa para treinar, fizesse sol ou chuva e nem mesmo a água fria dos chuveiros com que muitas das vezes eramos brindados, arrefecia o nosso entusiasmo e amor ao clube e à modalidade.
Ainda hoje, passados já muitos anos, ainda marcamos todas as sextas-feiras à noite um treininho para manter a amizade e espirito, e depois ir repor líquidos e energias até à Duvália ou ao Rei dos Galos de Amarante.
O CDUP não explico por palavras, solto o coração, liberto sentimentos e encontro sempre união, carinho e paixão.
Foi a casa que, para além do amor, também me deu a independência financeira, pois foi aí que comecei a trabalhar em 1992, onde sempre fui acarinhado, onde todos me ensinavam a mística e onde eu com o decorrer dos anos penso que também, de alguma forma consegui passar o legado herdado.
O CDUP é o meu Oásis, onde ainda tenho prazer de ir a qualquer dia, onde posso estacionar o carro, abrir os vidros, reclinar os bancos, tocar as minhas musicas no rádio, fechar os olhos e deixar-me levar nas saudades passadas, na felicidade presente e nas esperanças futuras
Como compara o Andebol de hoje e o Andebol da década de 80 e 90?
Actualmente é mais físico e atlético consequentemente mais rápido, e táctico.
Essencialmente o que mudou muito foi a nível de dinamismo e intensidade de jogo e de treino, pois o Espirito e a paixão pelo Andebol encontro em todas as gerações.
Esta minha comparação é em termos genéricos da modalidade, pois em termos práticos e dentro da minha especificidade como treinador de formação, infelizmente tenho de admitir, que, apesar da evolução física dos atletas, as muitas ofertas actuais a vários níveis, retiraram em muito, o entusiasmo e a necessidade do desporto como forma de socializar e se empenhar.
O Vítor perdeu o pai muito cedo. Ainda antes de ingressar nesta modalidade. Todas as crianças gostam de ser acompanhadas pela família e, nos jovens atletas, o pai tem sempre um papel importante. No seu percurso desportivo, como sentiu a ausência do seu pai?
Sim, infelizmente perdi o meu Pai com apenas 13 anos, uma idade em que ainda não percebemos mutas coisas, uma idade em que começamos a descobrir outras, uma idade que independentemente de podermos parecer já crescidos, não passamos de miúdos sonhadores…
Foi devastador, das poucas vezes que chorei na vida, porque mais que a minha perda, foi ver as lágrimas, a aflição e desespero da minha mãe que ficava sem o homem da sua vida e com 4 filhos no seu regaço, ao seu cuidado, com fracos recursos, mas, com um coração e uma generosidade impar que nos aconchegava e dava esperança.
De certa forma, cedo tive de fazer o papel de pai, cedo tive responsabilidades, cedo tive de me tornar homem e consequentemente agir como tal, esquecendo-me que na verdade tinha, 16, 17, 18 anos e…por aí fora.
Na verdade, nunca tive um Pai presente no meu percurso desportivo, mas posso dizer que todo o meu trajecto com toda a certeza honraria e orgulharia o meu Pai…
Tive de encontrar nos colegas, nos treinadores, nos árbitros e em todos os agentes com quem tive a felicidade de privar, os sujeitos do meu respeito, disciplina e amor pela mesma causa desportiva.
Na verdade, em todo o meu percurso desportivo, nunca me senti só, O Andebol adoptou-me e as suas Pessoas acarinharam-me…
Senti mais a falta de um Pai, em casa…
De que forma a perde de audição num ouvido afetou o seu percurso no andebol?
Infelizmente fiquei surdo numa cirurgia em que o objectivo era precisamente o contrário, melhorar a minha capacidade auditiva… tive azar, talvez a maior derrota da minha vida…
Depois do sucedido tive de me adaptar, muitas coisas mudaram, tenho síndrome vertiginoso, falta de equilíbrio, perdi a sensação de lugar e pior de tudo, uma grande percentagem de comunicar e conviver, pois tenho dificuldade em captar vários sons e várias conversas em simultâneo.
Na verdade, a minha perda de audição é mais grave em termos sociais do que propriamente no campo desportivo, até porque me aconteceu já quando não praticava.
Quando decidiu que iria ser treinador?
No meu primeiro ano de andebol, quase que fui obrigado a ser treinador… vi no Treinador e desde sempre grande amigo Mário Santos, um exemplo de paixão, amor e dedicação ao treino e aos seus atletas tão contagiante, que foi impossível ficar indiferente aquela mensagem que estava a receber sem querer também ter a possibilidade de a transmitir a outros e para outros.
Sou Treinador desde os meus 17 anos.
Esta decisão de ter um papel de formador na vida das crianças esteve de alguma forma ligada à perda precoce do seu pai?
Não… digo-o convictamente, pois não sou pessoa de compensações. Sou pessoa para dar o melhor de mim de forma desinteressada, sou pessoa de valorizar pelo esforço e trabalho realizado e sou a pessoa que adora dar a oportunidade desejada e merecida a todos que por ela lutam, sejam crianças ou adultos.
Adoro crianças, porque adoro a sua simplicidade a sua alegria e desenvoltura e por acreditarem que um adulto, como eu, possa ajudá-las a percorrer uma parte que escolheram do seu caminho na sua vida.
Treinador. O que significa esta palavra para si?
Quase que Alquimista… uma palavra mágica, que permite idealizar, trabalhar, aperfeiçoar e moldar a mensagem de uma arte que é o Andebol
Sente-se como um segundo pai de todos os jovens atletas que treinou?
Se fosse assim, nesta altura era “trisavô”, tantos foram as crianças com quem tive a felicidade de trabalhar.
Na verdade, em alguns casos fui Pai no acompanhamento, no apoio e na preocupação a algumas crianças de alguma forma mais carenciadas ou desprotegidos em termos pessoais e familiares.
Desportivamente, não era propriamente um pai, era mais um líder, uma figura de respeito, um amigo que exigia e retribuía…
Mais que ser pai, até porque poderia ser tendencioso, preferi sempre ter uma postura justa e correcta, para que em mim vissem liderança, igualdade e coerência na oportunidade.
O Vítor sempre se dedicou ao desenvolvimento das camadas de formação. Nunca ambicionou ir mais além, treinar equipas seniores? Porquê?
Esta questão tem muito que se lhe diga…
Infelizmente associa-se treinar formação a um iniciar de percurso de treinador ou falta de ambição do mesmo.
Mas, com toda a dedicação digo que sou um treinador de formação por convicção, por acreditar que a formação deve ter os melhores treinadores e que a formação é o suporte de toda a humanidade…
Como tal, a minha ambição sempre foi dar tudo de mim, para fazer dos outros melhores…
Lamento apenas que na Formação não haja a recompensa devida aos seus excelentes treinadores e só se lembrem da importância desta quando não há investimento para a competição.
Está no Boavista Futebol Clube desde 1998. Pensou alguma vez em sair?
Quando nos comprometemos com algo ou com alguém, pensamos sempre em construir algo forte e duradouro, pensamos sempre que é o princípio de uma relação, nunca pensamos o seu fim…
Mas claro está, se algum dia tivesse notado que o meu trabalho não agradava, seria sempre o primeiro a sair por mim, para que fosse encontrada melhor solução.
Porque nunca o fez?
Nunca o fiz, porque sempre foi um “casamento” feliz, onde todas as pessoas me desejavam e acarinhavam e a quem sempre devolvi esses sentimentos em gratidão, dedicação e paixão.
Sempre foi reciproca…
Todos estes anos dedicados ao Andebol, horas de treinos semanais, jogos aos fins-de-semana. De que forma afetou a sua relação familiar e com os amigos?
Não posso considera propriamente nada negativo, pois a minha família sempre soube e aceitou a minha paixão pelo Andebol.
Naturalmente que os jogos e treinos limitaram muitas outras coisas, mas, no deve e haver, o Andebol deu-me muito mais do que eu alguma vez poderei dar e de alguma forma compensar, pelos Amigos que encontrei.
Tenho agora tempo para recuperar e recompensar toda a privação que família e amigos tiveram por causa da minha dedicação ao Andebol.
Atualmente já exercia apenas a função de dirigente. O Vítor dirigente, alguma vez o fez esquecer o Vítor treinador?
Eu fui, sou e sempre serei treinador…
Ultimamente e de forma dedicada e altruísta ajudei o Departamento de Andebol do Boavista FC a organizar-se, porque o Diretor de muitos e bons anos, o Sr. António Santos, pessoa que tal como eu se entregou, de alma e coração, por motivos da sua vida pessoal teve necessidade de sair.
Como tal e como sempre coloquei as necessidades do Clube em primeiro lugar e decidir protelar a minha saída, para que pudesse “dar a mão” a uma nova Direcção constituída por um grupo de pais dedicados e empenhados em dar continuidade à nossa modalidade no Clube.
Confirma a sua saída do BFC mesmo nesta função de dirigente?
Sim, a minha saída é em todas as funções.
Porquê agora?
Desculpe-me a metáfora, agora, porque felizmente consegui ajudar a construir e pôr o barco a navegar em águas mais tranquilas e porque tenho a certeza que Andebol do Boavista vai chegar a bom porto.
E porque já passou um ano e meio desde que conscientemente tomei essa decisão e só porque foram surgindo imprevistos e necessidades no Clube, o coração me obrigava a permanecer para ajudar e consequentemente adiava a minha saída.
Agora, porque há uma nova Direcção do Departamento empenhada e decidida que já tomou as rédeas organizativas e lhes permite dispensarem a minha pessoa.
Agora, porque cada vez mais é valioso e gratificante o tempo que passo com as minhas mulheres…
Como acha que os “seus meninos” vão reagir ao saber que não o vão ver diariamente nos campos axadrezados?
As crianças têm uma capacidade excecional de se adaptarem a novas e coisas e a novas pessoas, pelo que tenho a certeza que os “Meus Meninos” o serão à mesma para outros treinadores.
Acredito também, que para além da mensagem desportiva, tenha também conseguido passar valores pessoais e sentimentais e que com isso consigam alterar aquele velho ditado que diz: “Longe da vista, longe do coração”.
Eles sabem que estarei sempre por perto, eles sabem que sempre fui mais que um simples treinador, mais do que formação desportiva, sabem também que valorizei sempre mais a importância da formação humana.
O que foi na sua vida o Boavista Futebol Clube?
O Boavista é o meu Grande Amor…
É como a música do Pedro Abrunhosa “Tu me dás a mim, tudo o que eu te dou…”
É o fim da sua carreira no Andebol ou pensa em treinar mais algum clube?
É o fim de um ciclo…
Penso apenas que agora vou “treinar” a minha família.
Se a carreira me leva a outro lado? Nunca se sabe, nem eu sei como será estar sem o Andebol.
Do que vai ter mais saudades?
De todas as pessoas que valorizam o Andebol, atletas, dirigentes, árbitros, treinadores, pais e daquele espaço tão Nosso e dos Nossos Meninos que se chama balneário.
Do que não vai ter saudades?
Desconfio que não vou conseguir enumerar nada.
O Vítor tem duas filhas pequenas. Gostava de as ver a jogar Andebol?
Secretamente adorava que sim (a minha mulher é que não deverá gostar, pois passaria a ser mais a estarem fora de casa), conscientemente quero que elas sejam felizes e realizadas naquilo que escolherem…
Mas, se puder dar uma “mãozinha” e as puder “empurrar”, ao Andebol elas vão parar.
Vamos vê-lo em algumas bancadas dos pavilhões?
Com toda a certeza.
É tão bom contemplar aquilo que tão feliz nos faz.
Se todos os atletas que já passaram por si o pudessem ouvir agora, o que gostava de lhes dizer?
Gostava de lhes dizer que foi um privilégio e uma honra enorme eles permitirem que eu os acompanhasse e orientasse em determinado período da sua vida.
Porque na verdade, todos eles é que fizeram de mim Treinador.
Devo-lhes um Obrigado por TUDO o que me deram… e foi TANTO…
Gostava de lhes dizer que “Eles”/Atletas são o melhor do Andebol
Que mensagem gostava de deixar aos actuais jovens do andebol português?
Que no Desporto, a entrega, trabalho e ambição serão sempre recompensados e lhes permite a excelência.
O Vítor considera-se um treinador de andebol ou um homem do andebol?
Considero que o Andebol faz de mim um Homem Feliz e um Homem realizado
Para o Vítor Nascimento, o Andebol é…
Uma FELIZ Forma de Vida…
É a minha casa,
É onde encontro e partilho felicidade com todos os seus agentes
É uma Família, da qual eu tenho o prazer de fazer parte
Entrevista de
Manuel Pina
Nenhum comentário:
Postar um comentário